RELATOS - 2


Subia a ladeira íngreme da vila como que levasse o peso do mundo em um dos ombros. No outro, como tentando equilíbrio, revezavam-se as contas do fim de mês e uma sacola magra com o que conseguiu negociar no mercadinho da esquina. Morava na penúltima casa, tingida de um verde que o tempo desbotou faz anos. O sol ainda não tinha se posto. Talvez por isso o suor brotava por todos os seus poros mas mesmo esbaforido com toda sua carga, saudou a portuguesa refestelada na escada da casa três. Era uma senhora robusta e simpática que puxou conversa sobre banalidades. A chuva da semana passada. O cachorro da casa cinco que cismava de latir de madrugada, a cota extra exorbitante cobrada por conta do conserto do portão automático. O lixeiro que...Nesse ponto, já não escutava mais nada. Apenas sorria gentilmente enquanto voltava às suas considerações internas. ''Não é mole, não.'' Esta frase, dita num tom conclusivo, trouxe-o novamente à realidade. Concordou. Um breve cumprimento e continuou sua escalada. A pausa pareceu aliviar todo aquele peso carregado e, mais disposto, logo chegou ao seu portão. Três degraus, a maçaneta e o segredo e estaria em segurança, longe do tumulto do dia que havia passado. Em casa, era ele, era só, era seu mundo. Era onde todas as cobranças davam de cara na porta. Onde todas as censuras não lhe diziam nada. Arriou a sacola na mesa da cozinha e, aos poucos, despiu-se; da roupa, das taxas, das contas, das notas, moedas, do peso, do dia... Um banho morno e demorado lavou todo o resto. Nu, retornando à cozinha, abriu a pequena geladeira e diante da visão desértica, sem aborrecimento, retirou da magra sacola um pequeno pacote. Colocou uma panela no fogo onde logo a água ferveu. Coou um café ralo e amargo que bebeu sentado no sofá da sala. A janela, sempre aberta, exibia uma lua perfeita, num céu escasso em estrelas. Não havia vento, não havia brisa. Não pensava em nada. Apenas sorvia, o café e a lua, respirando a tranquilidade do instante e antes que o cachorro da casa cinco começasse a latir, vestiu-se da noite para se recompor e poder escalar, outra vez, outro dia.


- Lena Ferreira - Relatos 2

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