Postagens

Mostrando postagens de maio, 2015

DESEMBARQUE

Das viagens feitas com um só destino, despachei certas bagagens sem descuido. O conteúdo fora conferido atentamente ordem a ordem. Não há nada nos Achados & Perdidos. Tudo o que está contido possui autonomia de voo. Trago o mesmo sorriso guardado no bolso dos lábios. Ainda se abre facilmente ao mínimo aceno das delicadezas mornas e improvisadas. O vento é outro. É outra a brisa. O mar, suspenso. Não há estrelas, é dia. Lembranças chegam como um bálsamo aerado entre sussurros. Rasgam o bolso em risos de  canto a canto. E debulham as pétalas da alma arredia. E alisam a calma em conquista suave. Acaricio a lista das permanências e, respirando mais leve, flutuo. Pouso sob um céu reconhecido que me abraça e me faz blues.  Sopros sibilantes trazem para perto, vozes e vozes equidistantes. Desembarco. Entre os diálogos tranquilos e sem pressa. Saudade é bicho que se mata devagar. DESEMBARQUE - Lena Ferreira - mai.15

PASTOREANDO AUSÊNCIAS

Ah, vertentes de constâncias e alívios, águas deslizantes em perenes sossegos que margeiam certas sedes insolventes... - com aquelas que, pastoreando ausências, alisam os seus umbigos proeminentes dolentes num descampado modesto - ...tendes complacência - grávidas de gestos, miram distâncias   e aguardam pelo parto dos convívios - PASTOREANDO AUSÊNCIAS - Lena Ferreira - mai.15

UTOPIA

Era um andar com sede farta de horizonte  e cada passo sussurrava: adiante, adiante como a lembrar pros pés de estradas várias que desistir é ressaca de embriaguez tardia ia assim na caminhada, ora cheia, ora vazia ia alternando a marcha: ora rasa, ora funda ora lenta, quase escassa em caça e pressa em tempos de cansaço expresso no olhar vago duvidando do limite imposto ao  imaginário vincava a linha tênue entre sonho e realidade para acordar mais tarde, já refeita de ideias de sopro, de vozes e de vigorosas vontades solfejando às saias do vento: adiante, adiante oh, sede oásis, deserto, sede a sede, utopia sede água para os pés além dos desérticos dias UTOPIA - Lena Ferreira - mai.15

ASA

Água contida recebe o vento em ronda e fenda vidra o espelho turva miragem reflexo outro que não o certo por ele dito e feito vaza Água vertida percebe o tempo em roda e renda dobra o joelho curva passagem molde volátil  conceito aberto no verso escrito efeito asa ASA - Lena Ferreira - mai.15

DIA APÓS DIA

É nessas horas em que o sol sai do seu berço e se prepara pra mais uma reestreia sem se importar com convidados ou plateia que, refletindo no seu gesto, amanheço Saio da cama, me espreguiço e bebo um terço do sopro bom com notas frescas de azaleia o outro terço, é do café que acorda a ideia um banho fecha o ritual e agradeço Sigo à rotina - livros, provas, exercícios - onde o final ainda parece com o início onde o cansaço vem tentando uma vaga E nessas horas, miro o sol no seu ofício: por mais estranho que pareça, e mais difícil, dia após dia, reestreia e não se apaga DIA APÓS DIA - Lena Ferreira - mai.15

RELEVE

E diante daquilo que lhe cerceia não vale a pena a plena ocupação se sim, há de prender-se numa teia viscosa onde não mora a redenção Releve o dito, o feito e prateia as mãos, os pés e o peito em oblação absolvendo assim o que permeia nesse espelho de compleição Instantes haverão de breve estio bem capaz que por isso sinta frio enquanto outros se cobrem de razão Mas, diante daquilo que lhe quer rente demonstre, com semblante sorridente, o que revela a alma ao coração RELEVE - Lena Ferreira - mai.15

REVOADA DE VESTÍGIOS

Daqui da varanda, vejo uns gestos certos pastoreando palavras com esmero um rebanho de pelos claros e macios que caminha tranquilo por um campo extenso levemente umedecido por estrelas e orvalho  basta-lhes  um discretíssimo aceno e a nuvem da expectativa se arrobusta se outro, justa,  se desfaz  em chuva e a voz entorna limpa em cantares sacros e os passos, firmes em louvores profanos aos pés dessa varanda em que me ponho há um jardim de florescência contínua onde ramos de lírios dançam com o vento impregnando o olfato, os poros e a visão aspiro, expiro, inspiro-me:  aroma, perfume, essência e toda a nota sentida sem fazer nenhum sentido é uma canção a mais, é revoada de vestígios que cantarolo,  quase serena, considerando os gestos enquanto o vento prossegue soprando a desrazão REVOADA DE VESTÍGIOS - Lena Ferreira - mai.15

NAS MANHÃS VERDES AINDA

Nas manhãs verdes ainda os seios das sementes trazidas pelas aves amamentam  a sutilíssima promessa em juras de colher diálogos claros de vento isentas, assistem ao ensaio   de uma brisa que adolesce, risonha  e macia enquanto sussurra umidades para o campo ervado estranhamente em brevidades e hiatos tudo é espera suave adubo, rega, zelo e capina Nas manhãs verdes ainda o sol, preocupado, se ocupa a mais nessa campina: amadurece a brisa e amortecendo os silêncios graves a promessa da colheita logo está pronta a ser cumprida NAS MANHÃS VERDES AINDA - Lena Ferreira - mai.15

SEMÍNIMA

úmidas, as palavras que proferes dançam com a língua um bolero de Ravel provocando rubores castos e imprevistos nos lábios, na face, nos olhos, nos cantos, alteram expressões desconcertando a timidez estreita e concisa da vaga precisa entre a pausa fugidia e o dó maior como a adivinharem o mais ínfimo e íntimo desejo as palavras que proferes, úmidas, úmidas, mais parecem beijos - Lena Ferreira -

CORAGEM LEONINA

Venho de amparar líquidas mágoas que cutucavam a visão de hora em hora e, espiãs das lágrimas nascidas cedo, sorriam secretamente da indiscrição de cada parto, melancólico e sem fim circundando rotas e velhas respostas todas senhoras de certezas seculares lancei outras perguntas em segredo silenciando cada ruga de expressão de cada vírgula entre o sim e o talvez outro hiato então se fez nesse ofício e foi difícil prosseguir na trajetória já que a história reprisava o enredo já que, sem medo, desejava ir além quase rendida pela circunstâncias toda rendada por desimportâncias bebi todo silêncio que me oferecia e nessa afonia  incômoda, sobrevivi farto foi o fardo dos velhos cansaços que suaram nesse exercício inútil e tolo onde o dolo tinha odor de recompensa em frascos longilíneos e inesgotáveis entre o desisto e o sigo em frente a claridade duelava com o puro breu sob o olhar isento das mansas águas numa batalha sem glórias ou garant

MISSIVA

As notícias das tuas pegadas em terras tenras então estrangeiras pousaram bem calmas nestas mãos aflitas desdobrando o viés de uma saudade latente letras lidas ponto a ponto com a ponta dos dedos trouxeram para perto a ilusão do teu quê tão distante na desdobra, um aroma almiscarado sossegou os sentidos - mesmo que por um raro e brevíssimo instante - num aconchego terno, a missiva abrasou o meu peito enquanto um azul ultramarino testemunhava as nuvens que passeavam vagarosamente pelo meu céu logo choveu... uma chuva quieta e fininha pelos olhos miúdos  em gotas de esperança de que na volta de tantas andanças outras nuvens virão carregadas pela tua alegria tranquila MISSIVA - Lena Ferreira - mai.15

OFERTA

Oferto-te os meus olhos cônscios debruçados nas horas tranquilas quando os desassossegos cochilam e a calma beija os cílios por dentro Há tempos espero-os assim leves e silenciosamente expressivos espelhando os motivos do instante Oferto-os em detalhes mansos debruçados nas horas discretas que tanto pedem a tua presença e tanto pendem se de ti distantes Ah, este é o momento perfeito toma-os para que me pertença o que, no fundo, levo no  peito OFERTA  - Lena Ferreira - mai.15

DE PAPEL E NUVENS

Um barco feito de papel e nuvens barco pequeno que se atreve ao mar enfuna as dobras nessas águas frias corta oceanos, contorna os naufrágios lança suas sedes pescando  ilusões singra a sua saga, sangrando as marés  desafiando medos, faróis e rochedos engole as ondas de arenosas espumas   e, pagando o preço pelo atrevimento, breves avarias ancoram o seu cansaço retorna ao porto nos braços do vento atracando os fracassos aos pés da areia desdobra as nuvens num quase descanso desfeitas em chuvas de refazimento DE PAPEL E NUVENS - Lena Ferreira - mai.15

ENTRE OS SUORES CEGOS

Certas notícias forasteiras trazem a impressão de rumores precisos às cidadelas e, fabricando os tipos, fomentam bocas com as suas ilusões venais Correm as vielas, sobem escadarias degrau, degrau, entre os suores cegos negritando os pingos da não-novidade saciam sedes secas fartas desestruturais O pó do tempo a tanto tempo escasso desfaz seu riso gestado à surpresas desce as escadas e, imprimindo pressa, despensa o que só interessa a esses jornais   ENTRE OS SUORES CEGOS - Lena Ferreira - mai.15

SOBRE OS ARCOS

Com passos de espera inverniça caminho leve, apreciando a paisagem de um outono morno e tão incerto como os meus pensamentos vãos as folhas no caminho, semimortas esboçam um sorriso enraizado contrafeitas com o destino natural: foram escolhas? foram escolhas? divago nessas interrogações enquanto os meus passos se amiúdam como adivinhassem necessário o instante pondo-me diante da ponte imponente meus olhos se enchem sobre os arcos bebendo a visão majestosa ao redor um cheiro de estiagem passeia por mim enquanto uma brisa temperada me abraça sob a ponte que separa os meus mundos um córrego, manso, frio e fino recolhe as folhas despidas dos galhos levando-as para muito além do mais ao longe, ouço ainda alguns murmúrios e os assovios não consentem o abafar: foram escolhas? foram escolhas? - o inverno não tarda em chegar - SOBRE OS ARCOS - Lena Ferreira -

A ESTUFA

Uma estufa que só orvalho produzia recebeu o suave sopro de um bom vento renovando o ar com nobre sentimento acordou a rica semente que dormia Ia alta a noite, mas bem parecia que o sol havia entrado porta adentro vicejando raízes, talos e o centro respondendo como quem amanhecia Da semente fez-se muda e, germinada, gerou outras mudas, todas replantadas onde a florescência tende à fartura A estufa que só produzia orvalho hoje está replena em flor e cada galho, grato ao vento, exala essência de ternura A ESTUFA - Lena Ferreira - mai.15

ÉRAMOS SEIS

- às mães de ontem, de hoje e de amanhã, que sejam felizes as homenagens de todos os dias! - Éramos seis. Nascidos e morando numa vila pequena e carente da Rua Goiás, na Pavuna, onde sofríamos com as enchentes ano após ano. A última, a de 1970, havia levado praticamente todo o pouco que nos restara.  Seu Russo, dono da vila e padrinho de minha irmã mais velha, cedeu uma de suas tantas casas espalhadas pela Baixada Fluminense para morarmos. Uma casa pequena, com quintal e poço, em Nova Iguaçu. Para lá mudamos no mês seguinte, eu, meus cinco irmãos e meus pais levando, numa carroça, o estrado da cama de casal, dois móveis de sala, um colchão, uma cadeira, algumas mudas de roupas e nossa dignidade. Lembro-me bem do dia da mudança, apesar de tão pequena. Não foi difícil me adaptar na nova residência. Mais foi para mamãe. Na Pavuna, ela era conhecida, tinha clientela para suas lavagens de roupa e costura.  Era o trabalho que mais se ajustava à sua condição de cuidar de uma fi

INQUILINO

Moro em mim. E quando abro as janelas, às vezes, a paisagem me assusta e o medo do conhecido me espanta. Às vezes, palavras graves derrubam portas e o baque perturba ainda mais a razão em prejuízo. O juízo, já tão ralo, desce a galopes pela escada.  Às vezes, nada, nada, nada me decora ou me ilumina. Então, fecho as cortinas e durmo um pouco ou procuro um quarto escuso e escuro onde guardo os meus bilhetes - os mais secretos e os mais estranhos e os mais confusos - aos quais recuso dar a luz do esquecimento por apego mero. Espero por um milagre vindo de fora, que não chega enquanto... Enquanto não mudo. Outros cômodos aguardam por faxinas que não faço... Por preguiça ou cansaço ou descaso ou já nem sei - janelas fechadas, espero, espero - É alto o preço de um aluguel pago por tanto tempo estacionado na vaga do senão. Moro em mim. Cheguei até pensar em me mudar, abrindo mão do espaço em vão. Mas, misturado aos meus bilhetes, encontrei este curto recado: abra as janelas, deixe a

ENQUANTO ESPERAS

Inquieta-te quando pressentes desmaios entre a crescente lua e a lua cheia: amanheces quase  morna e anoiteces fria seguindo a sina da estação corrente desabita-te rápido entre as oscilações; lunares rumores e humores  polares que flutuam no entorno, não te pesam tanto quanto as palavras ausentes das distâncias, fizeste proximidades curvas das chuvas em ensaio, criaste aragem certa umedecendo o campado vasto e imprevisto nos meses ralos em brevíssimos soslaios aquieta-te; quando a lua ajustar a sua rota decerto a varanda será  só passagem aberta para os raios que não antecedem trovões para as nuvens que não transportam m’água - enquanto esperas, semeia flor no teu deserto - ENQUANTO ESPERAS - Lena Ferreira - mai.15

TOCHA

Nem bem preciso fechar os meus olhos adivinho fácil o seu semblante plácido - e enterneço - sorriso tranquilo, verão  luminoso tocha perene num túnel escurecido e desértico rimando luzes de astrais seculares e  claros nos gestos profusos em cores e verbos e modos e tempos e gostos e versos atemporais tateia sentires distintos e equidistantes cruzando, dos oceanos remotos, seus tênues limites semeia luz na luz e na sombra e a soma do seu lume espelha e espalha entre chuvas e vendavais de quem se fez ombro, abrigo e seta de quem desfez a clausura e a censura de quem refez o traço, curso e a meta usando  puramente o amor e a ternura Nem bem preciso fechar os meus olhos adivinho fácil o seu semblante plácido - e agradeço - TOCHA - Lena Ferreira - mai.15

CONSERTOS FRÁGEIS

Cumpre-se mais um dia pincelado em novidades sobre as coisas antigas fadigas são esquecidas sob os consertos frágeis das habilidades improváveis e desinteressadas a noite vem e deita um tom descansado e flácido sobre as vozes de fora e adormece as de dentro no centro aveludado, a chuva não cai nem garoa entoa um cancioneiro nu, extremo e extremado: onde as notas reajustam-se pelos suspiros avulsos os impulsos seguirão desarmonizando a sinfonia - contratempos acordam na pauta do concerto e tocam as síncopes dos consertos  palatáveis - CONSERTOS FRÁGEIS  - Lena Ferreira - mai.15