NO CENTRO COMERCIAL

Venho planejando, sem sucesso, um dia poder antecipar as compras de natal em, pelo menos, três meses. Sim, meu sonho de consumo! É que toda essa correria para os festejos de fim de ano sempre me afligiram. Lojas repletas, alvoroço, empurra-empurra, gritarias, dúvidas sobre o que comprar para cada um e o cuidado de não me esquecer de ninguém.  Passava sempre a  responsabilidade para terceiros, quartos, quintos. Qualquer um, desde que não fosse eu a  enfrentar a barbárie da comercialização pontual.
Este ano, apesar do mesmo tumulto, das mesmas situações, resolvi encarar todo o processo com boa vontade e disposição. Saí de casa cedo e sozinha, sem hora pra voltar e pude observar  em cada rosto a mesma ansiedade que carregava comigo. E como me fez bem saber que não estava sozinha em meio aos conflitos sobre o que comprar, se vou acertar na escolha, se o preço é justo, se, se, se...
 Mas sempre se tira algo de proveitoso em qualquer situação, basta treinar os olhos de ver, não é?  Pois bem, ontem foi um dia de treinamento intensivo.  E de aventuras pra lá de surreais, até para alguém acostumada com realidades inventadas, mirabolantes, como eu.  
Relato a título de memória, duas delas no mínimo inusitadas para estes tempos em  que vivemos, de tão poucos diálogos e econômicos gestos:


I -


 Numa dessas lojas de roupas femininas, lotada, passei do jeito que a condição me permitia, por um grupo de senhoras nervosas que disputavam uma camiseta branca já para o réveillon. Eu, corpanzil, esbarrei numa delas que irritadíssima, bradou: esse povo não tem educação! Podia pedir licença, né, minha filha? Cruz credo! Eu, hein... tsc tsc.
 Apesar da barulheira na loja, pude ouvir perfeitamente e consciente que a senhorinha, e com razão, se referia a mim. Poderia deixar pra lá e seguir meu caminho mas... Voltei o rosto em direção a ela que me encarou com um olhar fuzilante, armado e preparado para atirar ao meu revide. Que não veio. Olhei calma bem dentro dos olhos dela, me desculpei pelo ocorrido e falei que ela também não precisava ter falado daquela maneira comigo. Nem com ninguém. Ela, espantada com minha reação, desarmou-se e também se desculpou pelo tom usado, me desejou um feliz natal e tudo seguiu na mais perfeita desordem dentro daquela loja. Saí de lá sem levar nada comigo além da experiência, inédita até aqui. Não. Não fui beatificada pelo espírito natalino, não. É que se eu desse ‘corda’ à irritação dela, quem estaria irritada, remoendo a situação possivelmente até agora, seria eu.


II -


Já quase finalizando minha missão, com algumas sacolas na mão, entrei numa lojinha de bijuterias à procura de um colar vermelho para compor o visual do natal. Ousaria usar vestido depois de anos e anos repetindo a conveniência confortável  e acertada da calça jeans.  Mas o vestido me paquerou tão lindo e não resisti e até que ficou legal! Pois bem. Tarefa que parecia fácil, escolher um simples colar, rendeu-me a maior parte do tempo e, cheia de sacolas, era inevitável esbarrar em algo...Ou alguém. Eu e meus esbarrões.  Dessa vez, uma senhora muito gentil, delicada e educada, fina mesmo, recebeu o ‘encontrão’ com muito bom humor através do qual estabelecemos um agradável diálogo. Falou-me de sua  aventura no garimpo de ‘lembrancinhas’ para todos da família e amigos, vizinhos chegados. Costumava dar presentes bons mas este ano seria diferente, visto que sua neta casará em março e instaurara até lá o sistema de contenção de despesas.  E mostrou-me satisfeita o que conseguira na sua empreitada.  Mimos delicados e significativos. E pra completar, olhando-me nos olhos com doçura de avó, sentenciou: filha, o que importa não é o valor do presente. É o fato de fazer isto que estamos fazendo. Enquanto procuramos o presente, ou lembrancinha, estamos pensando na pessoa que será presenteada. Isso é o que importa de fato.
Pagamos nossas comprinhas e saímos juntas da loja. Ela, sorrindo sempre, desejou-me felicidades para o ano vindouro e retribuí com palavras de carinho acompanhadas pelo meu melhor sorriso.  Despedimo-nos com um beijo em cada mão e fomos, cada uma, para um lado da rua.

...

Poucas  horas mais, voltava para casa. Cansada, confesso. Missão quase cumprida. Certas pendências ficarão para a última hora. Sempre ficam. Como estas vivências aqui relatadas também ficarão e para sempre.  Deixei aquele centro comercial com a sensação de que estava aprendendo muito mais de vida, da sua simplicidade e grandeza, neste finalzinho de ano. E de maneira atípica; sem pressa, desarmada, leve e paciente. Santa? Louca? Ingênua? Não.  Aprendiz.  De ser gente, simplesmente.




NO CENTRO COMERCIAL - Lena Ferreira - dez.14


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