BIGAMIA
Percebo um silêncio
que, mansamente, flerta comigo desde que a minha alma amanhece até
que eu anoiteça. E, mesmo sabendo-me casada com a inquietude,
insiste; sorri das queixas vazias, dos risos bobos, dos lamentos
fúteis, das fúrias breves e euforias largas. Sempre, sempre com um
sorriso miúdo, refrescante e sedutor.
Ando pensando,
seriamente, em render-me à sua proposta: calar o tempo, observar um
tanto mais de tudo o que se passa antes de libertar o verbo da
garganta. Antes de por a língua em cena. Antes de por o mundo a
perder. Antes de...
Ando pensando em
reservar a ele, pendurado no céu da minha boca, a palavra
sacrossanta loucamente profanada até aqui. Quem sabe assim, travemos
uns diálogos mais macios...Quem sabe, então, a compreensão desça
com calma dos céus...
Talvez assim, os véus
que cegavam a razão, se extinguam e os olhos enxerguem o que antes
se revestia de mistério. Com os poros, peles e pelos entregues a
esse apelo silente, os lábios quietos, alimentar-se-iam de mais vida
e poesia; essa é a promessa...
Enfim, decido.
Render-me-ei a esse silêncio que me sonda, diuturno. Aceito seu
cortejo tão galante, refrigério que antes me constrangia. E, antes
que alguém pense em adultério, aviso que a inquietude concordou
com a bigamia.
BIGAMIA – Lena
Ferreira – out.14
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