O gato se divertia sozinho com a poeira suspensa. E eu preocupada com a maneira tensa com a qual o vizinho de frente resmungava em relação à barulheira provocada pela obra na casa seis.  Pudera. O operário dava início ao trabalho antes do horário permitido e se estendia até quase anoitecer, sem pausa. Urgia concluir o serviço a tempo de colocar outro orçamento na roda. Tempos difíceis esses em que construir é raro e caro e o dinheiro, necessário para o mínimo, anda escasso. Há de se aproveitar cada chance de suor digno e assim ele fazia. Com pressa calculada, sem desprezar o profissionalismo.
Não me incomodava o barulho. Inspirava até. Era como se cada batida na velha parede acordasse a sede por reformas. Como se cada saco de entulho no despejo estimulasse o desapego das coisas que perderam a sua função.
Tanto assim que nem contava os dias esticados pelo vozerio da serra, do martelo e de toda conversa entre as ferramentas. Mas o vizinho da frente sabia direitinho. E fazia questão de verbalizar a sua insatisfação. Não sei se pelo barulho ou pela transformação. Desconfortam certas mudanças que não nos dizem respeito.

Concluída a obra, confesso senti falta do barulho. O vizinho? Tratou logo de ajeitar outro assunto para reclamar. O gato? Ah, o gato continua se divertindo sozinho. Com o que? Ele é quem escolhe. 

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